Controle remoto. Remoto controle. O que controlamos, afinal?

Pedro Inoue

Pedro Inoue

· 13 min. de leitura
Controle remoto. Uma reflexão interessante, por Pedro Inoue

Sou um amante da Música Popular Brasileira. Sou-o porque a língua brasileira - uma ramificação em muitos aspectos diferente da língua portuguesa falada em outros países lusitanos - é uma amálgama de histórias, de culturas, e, por conseguinte, de linguagens. Consequentemente, o cancioneiro brasileiro, tendo como característica de sua matéria prima um furta-cor extremamente sofisticado, é um fenômeno capaz de exprimir em palavras até aquilo que a linguagem não dá conta. Sim, o nosso “jeitinho brasileiro” é capaz de exprimir de forma eloquente até o Real lacaniano[1].

Cabe, aqui, um disclaimer. Em se tratando de MPB, existe um mundo de possibilidades e de períodos que nem sempre recebem uma atenção equânime. Refiro-me a uma atenção crítica, acadêmica e literária, que grosso modo recai quase que unicamente na geração que produziu entre os anos 1960 e 1970. É escusado dizer que uma produção que se provou tão rica nas décadas citadas já produzira de forma profícua nas décadas anteriores e continuou produzindo nas décadas seguintes. Contudo, é fato que a atenção despendida não é a mesma.

Pois bem, venho propor então uma análise-interpretativa de uma canção bastante conhecida da MPB que mereceria, a meu ver, estar no panteão do cancioneiro brasileiro. Sim, há diversas análises dessa canção por aí, mas gostaria de propor uma análise-interpretativa rigorosa, tratando o texto com a devida atenção e estabelecendo conexões com o espírito do tempo atual.

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A canção “Esquadros”, composta e interpretada por Adriana Calcanhotto, é uma canção atemporal. Lançada em 1992 no álbum “Senhas”, seu conteúdo dialoga diretamente com a realidade dos anos 20 do século XXI (este texto foi escrito em 2025), e, ao que tudo indica, continuará a dialogar.

Passemos, pois, à análise-interpretativa da canção. (Sugiro que escutem a canção de antemão, preferencialmente acompanhada da letra).

Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores


Na primeira estrofe, o eu-lírico[2] da canção assume uma posição rara nos tempos de hoje. É uma personagem que olha para cima, que sabe se utilizar das articulações do pescoço e dos globos oculares para captar visualmente aquilo lhe é apresentado. É um eu-lírico que não se contenta em olhar, mas que precisa ver[3]. Cabe ressaltar, ainda, que a canção-poema começa com o pronome pessoal “eu”, o que direciona o nosso olhar de leitor para uma condição bastante subjetiva.

Ademais, há a presença de um repertório cultural bastante conhecido, e sofisticado, nas referências ao cineasta Pedro Almodóvar e à artista visual Frida Kahlo.

Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve


Em seguida, o foco, que até então estava no sentido da visão, passa para o sentido da audição. O eu-lírico, aqui, na ausência de luz apresentada pelo termo “escuro”, precisa dessa mudança de foco para manter a atenção àquilo que lhe é externo. Há, ainda, um foco que se expande do “eu” para o “nós”, uma vez que o eu-lírico se preocupa com aquilo que “o irmão ouve”.

E como uma segunda pele, um casco, uma cápsula protetora

O símile[4] exposto aqui parece se referir a uma espécie de (auto)proteção do eu-lírico para com as informações externas que foram recebidas. No entanto, tal campo de força é quebrado pelos versos seguintes:

Ai, eu quero chegar antes
Pra sinalizar o estar de cada coisa
Filtrar seus graus


Aqui, toda a proteção posta pelos versos anteriores é quebrada já na interjeição ai!, uma interjeição de dor, de desconforto, que mostra que a “cápsula protetora” de outrora não fora suficiente. Há, ainda, a primeira indicação de vontade do eu-lírico expressa pelo verbo “querer”, que, à luz dos versos seguintes, demonstra um desejo de ver as coisas de perto, de se mesclar com as coisas, de se tornar um com o mundo.

Eu ando pelo mundo divertindo gente, chorando ao telefone
E vendo doer a fome nos meninos que têm fome


Nestes versos, há uma repetição do verso inicial. Há, porém, uma antítese presente nos termos “divertir” e “chorar”, o que revela já uma ambiguidade do eu-lírico. No exterior, e eu arriscaria dizer, àqueles que não são próximos, o sorriso. Em contrapartida, aos mais próximos - àqueles que têm nosso telefone e que ligam para nós e ligam para o que nós sentimos - o pranto. Por mais contraditório que pareça ser, em um mundo mediado por imagens[5], é mais fácil sorrir do que chorar.

Há ainda o “sentimento do mundo”[6], ou a raiz do termo “compaixão”, que significa “sofrer com o outro”, presente no verso final.

Pela janela do carro
Pela janela do quarto
Pela tela
Pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle


Chegamos, pois, ao refrão da canção. O foco retorna para a visão. Mas aquilo que antes parecia ser uma visão ampla, panorâmica, ilimitada, torna-se uma visão restrita pelos esquadros das janelas do carro e do quarto, e pela(s) tela(s) (da televisão, do celular?). Tais esquadros parecem impor um filtro, um limite à visão do eu-lírico, e isso resulta numa confusão ontológica, isto é, uma confusão do próprio ser. Quem é ela? Quem é ele? Quem somos nós? Quem sou eu? “Eu vejo tudo enquadrado” - lê-se, eu vejo tudo filtrado, eu vejo tudo pelas lentes de alguém que vê antes de mim. Remoto controle.

Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm para quê?
As crianças correm para onde?

Em seguida, há uma repetição do verso inicial. Contudo, os versos seguintes reiteram a confusão interna no eu-lírico. Os automóveis - lê-se, as máquinas, a tecnologia - para onde vão? As crianças - lê-se, o futuro - para onde se direcionam em um mundo tão incerto?

Transito entre dois mundos
De um lado, eu gosto de opostos
Exponho meu modo, me mostro


Agora, o ponto de vista retorna para o interior do eu-lírico. É uma reflexão que ressalta sua ambiguidade ontológica. Há, ainda, uma expressão adverbial inacabada. Quando alguém diz “de um lado etc. etc.”, espera-se automaticamente que haja o complemento “por outro lado, etc. etc.”. Isso não acontece aqui. A expressão adverbial se “resolve” com o eu-lírico expandindo sua descrição: “exponho meu modo, me mostro”. Isto é, me desnudo, me dispo, me apresento como sou realmente.

Eu canto para quem?


Em seguida, há a característica do aedo grego, que outrora era o responsável por transmitir de geração em geração os feitos do héroi, e fazia-o através de seu canto. Com efeito, o eu-lírico do texto em questão também canta, mas canta para quem? Quem é a audiência do aedo contemporâneo? Repete-se o refrão. Remoto controle.

Eu ando pelo mundo
E os meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço?


Nestes versos, há, novamente, a repetição do verso de abertura, mas a confusão do eu-lírico parece chegar ao seu ápice. Onde estão seus amigos? Onde está a alegria de outrora? Até o cansaço - condição quase constitutiva do sujeito do século XXI - parece ter se diluido na névoa da incerteza, da cegueira frente a tanta informação.

Meu amor, cade você?
Eu acordei, não tem ninguém ao lado



Antes de mais nada, cabe ressaltar uma nota de análise musical bastante amadora. A canção possui uma tonalidade melódica bastante regular. As estrofes possuem uma certa melodia/harmonia e no refrão há uma tonalidade menor, mais lúgubre, mais introspectiva, mas que logo se esvai. Nos versos em questão, tal regularidade se mantém. Contudo, há um recurso percursivo que faz uma baita diferença. Os acordes são os mesmos, a batida é a mesma, mas é acrescentado aqui um novo instrumento, o triângulo. A introdução desse elemento percursivo confere à estrofe uma característica de xote. Dá vontade de chamar alguém para dançar e puxar um “dois pra cá, dois pra lá”. A letra, entretanto, não dá suporte a isso. Onde está o amor para com quem dançar? O xodó de Dominguinhos? O eu-lírico acorda desse sonho e o xote logo se esvai. Quando acorda, não tem ninguém ao lado. Não à toa esse período é muito curto na canção. É um sonho que não se mantém por muito tempo.

Repete-se o refrão. Repete-se o xote. Remoto controle.

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Interessante dizer remoto controle em vez de controle remoto, não? É parecido com dizer homem pobre e pobre homem. Os termos são os mesmos, mas sua disposição na frase faz toda a diferença. Na língua inglesa, o adjetivo obrigatoriamente precisa vir antes do substantivo (por isso dizemos sempre hot dog e não dog hot para cachorro quente). Em português, contudo, frequentemente podemos inverter os termos sem prejudicar o significado da frase, mas às vezes a disposição dos elementos faz uma baita diferença.

Quando dizemos pobre homem em vez homem pobre, ao puxarmos o adjetivo para o início da frase, conferimos um novo significado a ele. “Pobre” deixa de significar “desprovido de bens/dinheiro” e passa a significar “coitado”. Agora pense em remoto controle no lugar de controle remoto. Quando se diz controle remoto, surge instantaneamente a imagem mental de um dispositivo preto com algumas teclas. Agora, quando se diz remoto controle o cérebro precisa de um pouco mais de tempo para compreender. A imagem do dispositivo preto não aparece assim tão automaticamente.

Está aí um prato cheio para o campo das linguagens. A mera inversão das palavras nos leva a reflietir sobre o significado delas: o que é controle? De acordo com o dicionário Caldas Aulete[7] é: “Ação ou resultado de controlar; ação de exercer domínio ou comando sobre algo ou alguém”. E o que é remoto? De acordo com o mesmo dicionário é: “Que se encontra distante no tempo ou no espaço”, mas também “que é muito pouco provável”.

Concluímos, pois, que remoto controle pode ser compreendido como aquilo que aparenta estar sob nosso controle, mas que na verdade escapa à nossa vontade. Controlamos aquilo que vemos pela janela, pela tela? Não. Sequências intermináveis de informação nos são apresentadas, e digerimo-nas como possível. Empanturramo-nos com informação. Ingerimos de tudo, e raramente sabemos distinguir aquilo que é útil daquilo é inútil. Enganamo-nos pensando que, mais que olhar, vemos, mas vemos tudo enquadrado - em quadrado - remoto controle.

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Em janeiro de 2025, Mark Zuckerberg, CEO do grupo Meta (gestor das redes mais utilizadas no Brasil, nomeadamente Facebook, Instagram e WhatsApp), alinhou-se à ideologia nefasta de Donald Trump e Elon Musk em defesa de uma versão distorcida da liberdade de expressão. Tal alinhamento com a extrema-direita mundial está para além do campo ideológico, mas possui fins materiais muito bem definidos. A consequência desse alinhamento, no curto prazo, será uma inundação nas redes sociais de desinformação, de discurso de ódio, de revisionismo histórico e, talvez o tema mais urgente, de negacionismo climático. O capitalismo se desenvolveu tendo como base a crença de que os recursos naturais são infinitos, e que portanto a expansão desse modo de produção não possuiria um teto. Possui, e o teto está ficando cada vez mais baixo. No longo prazo, os frutos que a extrema-direita financiada por bilionários colherá será a possibilidade de explorar de forma irresponsável o meio ambiente (daí o interesse do governo Trump na Groenlândia e na Amazônia) em busca de matéria prima para as atividades das big techs[8]. O capitalismo se apresenta portanto como um monstro que devora tudo, e que acabará por devorar-se a si mesmo.

Por fim, cabe o triste presságio de que em breve não veremos tudo enquadrado/em quadrado, e sim veremos tudo como eles querem que nós vejamos, seja circular, retangular, losangular, um quadro de Dalí, ou uma pedra de ósmio. Grande parte do debate público é pautado pelas redes sociais, e se um grupo de bilionários detém a combinação desse cofre que contém a matéria mais preciosa da atualidade - os dados - é evidente que eles utilizarão dessa vantagem em benefício próprio. Que saibamos, pois, resistir para vermos as coisas como elas são. Para sentirmos a fome dos meninos que têm fome. Só assim conseguiremos ver para além dos Esquadros.

Confira aqui a canção:

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Referências
[1] O “Real” lacaniano é aquilo que escapa ao simbólico e ao imaginário. É o lugar do trauma, daquilo que não pode ser expresso em linguagem.
[2] “Eu-lírico” pode ser entendido como a voz do poema. É aquele que fala em um texto poético.
[3] Utilizo-me aqui da epígrafe presente no “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago.
[4] Figura de linguagem que compara dois termos em um enunciado. Diferentemente da metáfora, o símile requer um conectivo de comparação (ex: como, tal qual, etc.).
[5] Apoio-me no conceito de “Sociedade do Espetáculo” de Guy Debord (1967)
[6] Título do livro de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1940.
[7] Foram utilizadas diferentes acepções apresentadas pelo dicionário para essa análise.
[8] Utilizo-me das reflexões propostas pelo professor de literatura da UERJ, João Cezar de Castro Rocha.



Pedro Inoue

Por: Pedro Inoue

Formado em Letras pela Universidade de São Paulo, é professor de Língua Portuguesa no Cursinho Popular Maria Vilani.