As coisas inúteis de grande valor

Pedro Inoue

Pedro Inoue

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Há um versículo bíblico que diz que se o sal vier a perder seu sabor, não servirá para mais nada, exceto ser jogado fora e pisado pelos homens. Bem, tal lógica utilitarista das coisas – isto é, algo só tem valor se tiver uma utilidade material e lucrativa – domina os nossos modos de existir no mundo atualmente. Fazemos atividade física não porque queremos cuidar do nosso corpo e da nossa mente, mas porque isso aumenta nossa capacidade de foco. Fazemos acompanhamento psicológico não porque queremos amadurecer como indivíduos, mas para nos ajustarmos à pressão sufocante que o mundo do trabalho nos aplica. Não assistimos filmes, vemos filmes. Não escutamos música, ouvimos música. Não lemos mais literatura, lemos autoajuda. O nosso tempo livre está aprisionado por uma necessidade de evolução laboral. Em suma, tornamo-nos produtos, e precisamos subir nosso valor (ou deveria dizer “preço”?), de modo que nossa própria existência parece ter sido limitada a uma constante tentativa de melhorarmos não como seres humanos, mas como seres valorizados e compreendidos através da nossa capacidade de produção. Em mundo tão reificado, como atribuir valor às coisas tidas como “inúteis” como a poesia, a literatura, a arte, a filosofia, o sentimento?

Na minha experiência como professor de literatura, não são raras as vezes que os alunos me perguntam “professor, para que ler literatura?” E a minha resposta sempre os surpreende “ora, para nada!”. Essa é, evidentemente, uma falsa resposta. Eu poderia dizer que ler literatura expandiria seu vocabulário, melhoraria sua capacidade de escrita, construiria um repertório cultural que poderia ser mobilizado em redações de vestibular ou concursos públicos. Tudo isso é verdade, mas, ao dar essa resposta, eu estaria reduzindo a literatura à ideia utilitarista que tanto critico. Todavia, eu procuro expandir a resposta corrigindo a pergunta quando digo: “não sei dizer para que ler literatura, mas posso tentar responder por que ler literatura”. Ao perguntar para que, buscamos por funcionalidade, utilidade, finalidade. Ao perguntar por que, buscamos razão, motivo, sentido. Com efeito, se seguirmos a lógica do utilitarista do mercado, a literatura de nada serve. Todavia, se buscarmos uma resposta mais aprofundada – resposta essa que resvala na própria razão da nossa subjetividade e existência enquanto seres humanos – a literatura torna-se vital e necessária.

Em sua palestra “O Direito À Literatura”, Antonio Candido argumenta que a literatura, em última análise, nos humaniza, e é sob esta ótica que apresento a literatura em minhas aulas. Imagine um físico nuclear que leu “Rosa de Hiroshima” de Vinicius de Moraes, engenheiros agrônomos que leram “Vidas Secas” de Graciliano Ramos e “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto, pastores que leram “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago, advogados que leram “Crime e Castigo” de Dostoiévski e “Mineirinho” de Clarice Lispector, epidemiologistas que leram “Ensaio Sobre a Cegueira” também de Saramago, ou “A Peste” de Albert Camus? Certamente, o olhar destes profissionais – da área das humanidades ou não – para com seu objeto de trabalho jamais será o mesmo. A literatura tem o poder de gerar encantamento e estranhamento com o mundo, e são essas as forças que geram vida e transformação.

Pedro Inoue

Por: Pedro Inoue

Formado em Letras pela Universidade de São Paulo, é professor de Língua Portuguesa no Cursinho Popular Maria Vilani.